quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O nacionalismo de Donbass


por Leonid Savin, originalmente postado em Legio Victrix



Os eventos em andamento no sudeste da Ucrânia revelam um fenômeno extremamente importante. Ele não age somente como o indicador de um front da luta geopolítica entre o Ocidente e um agremiado da construção mundial multipolar, da ruptura no coração da própria natureza do Estado ucraniano (que, nos últimos tempos, intervém como satélite e cliente de Washington e de Bruxelas), do crescimento da consciência política dos cidadãos (no sentido de que os cidadãos defendem seus direitos e liberdades com armas na mão ao invés de serem sujeitos a um Estado weberiano fraco e incapaz de protegê-los tanto da arbitrariedade de seus oponentes políticos  quanto de continuar cumprindo suas obrigações sociais), mas, também, a manifestação de um novo nacionalismo, único em suas características e objetivos.

Muitos são os que têm o hábito de contemplar o nacionalismo de acordo com duas características fundamentais, uma baseada na cultura, compreendendo a língua (forma alemã), e, outra, na política (forma francesa). No entanto, o nacionalismo tem, no fundo, uma variedade muito maior de atributos, em qual entram a etnia, a solidariedade do grupo, as autorrepresentações e identificações. É exatamente de acordo com esta abordagem que examinamos os processos de desintegração do Estado ucraniano, desenvolvendo-se atualmente no Sudeste, e que nos identificamos como a expressão do nacionalismo de Donbass.

O caráter político do processo aparece de maneira suficientemente evidente a partir do momento que vemos claramente a noção de sujeito político se encarnar em Lugansk, Donetsk, Slaviansk, e numa série de outras cidades. Tal qualidade de sujeito político entrou em sua fase ativa de formação no período de conflito, como foi o caso na Abecásia e na Ossétia do Sul, em um momento em que, no contexto de aversão aguda da política extremamente chauvinista do presidente georgiano Gamsakhurdia, inflamaram-se os centros de resistência e reverberaram-se as declarações de independência da Geórgia.

Nas outras regiões do mundo, podemos observar semelhantes aspirações à construção do sujeito político. Estão ligadas ao fator étnico e conhecem as diversas vias de resolução. Agitam-se na Grã-Bretanha o nacionalismo irlandês e o escocês, e, na Espanha, o basco e o catalão. Os partidários da unificação e da criação de uma nação ucraniana unitária seguem, intencionalmente, em silêncio, apesar de serem exatamente os movimentos nacionalistas europeus que vêm em mente desde que se convocou a ideia de nação. Evidentemente, a Ucrânia estava fadada às diferentes formas de etnonacionalismo, ao menos se vista do ponto de vista da geografia política: em comparação aos outros países da Europa, esta antiga reública soviética é grande demais para ser uma massa uniforme homogênea em termos de cultura nacional, histórica e de prática sociopolítica. Fica claro que, à parte de um nacionalismo artificial, e, em grande parte, teórico dos supérfluos banderistas, existem na Ucrânia outras formas identitárias, do da Rutênia, a extremo-oeste, até a Sloboda, e, própria desta, do Império Russo a leste.

De acordo com a tipologia, o nacionalismo de Donbass pode ser definido como sendo de tipo misto. Por um lado, é situacional, isto é, dotado de uma especificidade construtivista, contra a qual se colidem os esquemas da Junta de Kiev. Mas, por outro, é primordial, isto é, dispõe-se de profundas raízes históricas, pelas quais convém clamar um conhecimento subjacente. A deficiência da política liberal à francesa dos oficiais de Kiev ao longo dos dez últimos anos fez com que o embrião do nacionalismo de Donbass pudesse crescer e se reforçar com todas suas variantes, todas enraizadas em uma única plataforma global.  Se em seus tempos lhe tivesse sido introduzido o federalismo, seria possível que a Ucrânia tivesse fugido da situação atual. E no contexto de um nacionalismo inclusivo, oficial a diferentes níveis, linguísticos e culturais, poderíamos ver algo semelhante ao que existe nos Estados Federados da Alemanha e nos cantões suíços (tomamos tais variantes em consideração, levando em conta a aparição frequente do vetor e da escolha europeia da Ucrânia em nome de suas diferentes forças políticas ao longo dos quinze últimos anos). Mas não se fez isso.

À medida que os aspectos primordiais se situam o mais frequentemente sobre a argumentação dos movimentos nacionalistas (e de libertação nacional), é necessário que se examine em detalhe todas as fases históricas que lhe são associadas a fim de propor uma sucessão única de camadas, que podem incluir uma mitologia própria, como a memória histórica. Uma primeira fase diz respeito ao período proto-estatal, deixando de lado as especificidades da clara expressão de "Estado moderno", associadas à compreensão da soberania. Aqui são revelados fatores interessantes, tais como a presença dos alanos (sármatas e citas) na região do Baixo Don, e, mais acima, pela margem esquerda do Dniepr e ao norte do litor do Mar de Azov. Assim, ainda que a Crimeia esteja integrada à esfera do mundo helênico, o Donbass é parte da esfera cultural alano-sármata.

A segunda fase, relativa ao período das grandes migrações dos povos, experiencia a passagem de numerosos povos através do território que examinamos, assim como a instalação de alguns destes no território. Além dos eslavos, chegaram povos turcófonos, como pechenegues e cumanos, todos recebendo o nome de "chapéus negros". O próprio território foi dominado pelo Caganato dos Cazares, assim sendo integrado à Horda Dourada.

Ao longo da terceira fase, a região se tornou terra nullius, imersa em selvageria vazia de estrutura política clara, contígua à periferia das possessões de diferentes potências (Império Russo, Reino da Polônia, Canato da Crimeia e Império Otomano), onde os interesses rivais podiam provocar conflitos bélicos. É apropriado ressaltar a carta mandada de Ivã, o Terrível, para o Cã da Crimeia, em que indica que os cossacos vivendo no território e importunando os tártaros não tinham ligação alguma com o império moscovita. Eram um povo livre. Mas não ficariam mais tanto tempo autônomos, já que os "grandes jogadores" conseguiriam controlar seus meios de comunicação terrestres, fluviais e marítimos, assim como constituir zonas mediadoras destinadas a proteger a metrópole de quaisquer surpresas.

E assim foi criada a "Nova Rússia", quando, ao longo da guerra contra o Império Otomano, apropriou a região marginal do Mar Negro, assim como os distritos mais remotos. É de extrema importância observar que a região do Donbass foi influenciada pelo fator do cruzamento de culturas, estas sempre relacionadas por uma identidade cristã ortodoxa comum. Nos atuais distritos de Lugansk e Donetsk apareceu uma unidade militar e agrícola com o nome de "Eslaviano-Sérvia", e, igualmente, na época do avanço turco pelos Balcãs, emigrados da região dos sérvios, dos montenegrinos e dos valacos. Assim, outra unidade aparece no distrito de Kirovograd: a "Nova Sérvia". De fato, apareceu sobre o território de Slaviansk, ainda antes, um destacamento de guerreiros montenegrinos que se instalaram dentro das fortalezas de Tor (onde foi a localidade de Ostrozhets até 1637). Nós observamos no nome deste lugar uma conotação interessante. O escritor noruguês Thor Heyerdahl, grande viajante e explorador, ao tentar remontar as origens da mitologia escandinava, chegou à conclusão que a divindade suprema de tal panteão pagão, Odin, fora um personagem histórico, chefe de um povo, que remonta do Don inferior até o norte da Europa. Como sabemos, Odin contava em suas suítes com Thor, portador do trovão, envolvido diretamente com a guerra e com práticas bélicas. Thor sacrifica seu braço a fim de que os deuses enganassem a astúcia do lobo Fenrir, encarnação do mal na mitologia escandinava.

A fase seguinte foi a unificação territorial e política pelo Império Russo, através da constituição da terra (mais tarde, "oblast") do Exército de Don. Aqui se combinam os fatores religiosos e o cossaco. A maioria dos cossacos rejeitou as reformas do Patriarca Nikon e manteve para si a "Velha Crença". A esta fase se sucedeu o período da Revolução de Outubro, marcada pela tentativa da criação República Socialista Soviética de Donetsk-Krivoi Rog.  No entanto, o território foi integrado à Ucrânia.

Em seguida, vem a época da modernização stalinista, em que um fluxo de novas pessoas chegando contribuiu para o estabelecimento da indústria regional. Fica claro que o caráter trabalhador e as explorações heroicas dos mineiros e dos metalúrgicos, em oposição às figuras trabalhosas de marchantes e políticos (a criptoburguesia), exerceu igualmente uma influência no processo profundo de prisão de consciência identitária "de Donbass". Esta fase se prolonga organicamente pelo período pós-soviético, em que se pode escutar da própria boca dos habitantes da região "somos de Donbass", mais que se evoca toda a noção de pertencimento ao território ucraniano em sua integridade.

O fator da indústria mineradora teve igualmente significância determinante na formação da visão própria de mundo dos habitantes de Donbass. O trabalho nas minas é perigoso. Frequentemente a morte é encontrada, por uma pessoa ou por um grupo. Uma percepção da morte e uma relação com ela, especialmente particulares, são desenvolvidas, estranhas aos habitantes da Polésia ou de Lwów. Os nacionalistas de Lwów preferem à morte a evasão em direção à "Europa das Luzes", ou a uma nova pátria, como o Canadá, ou a Chicago norte-americana. Assim fizeram seus predecessores depois que haviam decidido unir-se à luta da CIA contra a União Soviética. Em Donbass, seus resistentes hodiernos vivenciam um espírito elevado e apaixonado próprio dos habitantes da região.

Em 1991, ao chamado de Kravchuk, a intelligentsia (incluindo a diáspora) envolveu-se no processo de formação de um novo Estado ucraniano. A construção de um semblante extraordinário, tal a elaboração de um mito, narrando os grandes ancestrais, os "ucraniopitecos", os arianos. Era necessário fixar os fundamentos de uma primordialidade da ideologia ucraniana. Debruçava-se mais sobre o delírio intenso e as alucinações de espíritos doentes que sobre a investigação científica e um programa, isto para presidir o nascimento de novas elites estatais e a educação de um espírito patriótico. O nacionalismo banderista é, por natureza, exclusivo, e as contradições internas em relação ao nacionalismo ucraniano, dominantes sobre outras ideologias do século XX, exercem uma função mais repulsiva que atrativa. Perante tais contradições dissimulam-se habitualmente os nacionalistas atuais em suas linhas, ainda que, em sua grande maioria, estejam longe de dispor dos conhecimentos teóricos de Dontsov, Lipa, Stetsko, Mikhnovski, e de outros apologistas do nacionalismo ucraniano.

Além disso, convém remarcar que a região de Donbass não foi submetida à expansão greco-católica que sofreu a Ucrânia Ocidental. Assim, é da Igreja Ortodoxa Russa do Patriarcado de Moscou que provém a posição dominante. Alguns poucos hereges, os filaretianos, que se dizem fiéis ao Patriarcado de Kiev, algumas extensões tardias do unismo e diferentes correntes protestantes não têm papel significante algum na formação do estado de espírito nos oblasts de Lugansk e Donetsk, onde seus adeptos e pregadores suscitam a aversão.

Resumidamente, observamos a aparição de um novo fenômeno, único e interessante: o nacionalismo de Donbass. Ao mesmo tempo, manifesta-se como forma intrínseca de um nacionalismo russo mais vasto, por sua estrutura ser obra dos mesmos fundamentos do nacionalismo russo, este exercendo uma função de cúpula, como uma ligação com a Rússia, particularmente com os distritos do Sul, historicamente ligados a Donbass. Por fim, independentemente da questão da guerra que atualmente segue entre Don e Dniepr, é evidente que o nacionalismo de Donbass se integra organicamente com o mundo russo da Eurásia.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Entrevista com Rafael Lusvarghi


por Andrei Volkov e Rafael Lusvarghi


(NT: Esta entrevista foi feita no dia 1/1/2015 pelo russo Andrei Volkov para o site sueco Operation Novorossiya com Rafael Lusvarghi, brasileiro que figurou nos noticiários ao ser brutalizado pela polícia durante as manifestações de meados de 2014, teve a imagem explorada ao ter a vida detalhadamente descoberta, e, agora, encontra-se lutando na Nova Rússia contra a Junta de Kiev. Apesar de introduções longas geralmente se fazerem necessárias, a entrevista é completa o bastante.)

Andrei: Poderia apresentar-se?
Lusvarghi: Meu nome é Rafael Marques Lusvarghi, nasci em Jundiaí, perto de São Paulo, no Brasil. Servi na Legião Estrangeira Francesa por alguns anos, e, de volta ao Brasil, tornei-me um tenente na Polícia Montada. Sempre tive grande amor pela Rússia, e é por isso que vivi lá por um tempo e aprendi cultura, língua e história.

Andrei: Dada a situação na Nova Rússia, como está se mantendo?
Lusvarghi: Estou me mantendo bem. Sou um guerreiro profissional... (risos) E, com meus camaradas aqui, formamos uma família de verdade. Então, apesar de todas as dificuldades e dos sacrifícios, tudo tem ido bem.

Andrei: Você mencionou ter experiência militar, mas que tipo de vida você tinha antes de se juntar a nossos camaradas na Nova Rússia, e o que o fez ir, em primeiro lugar?
Lusvarghi: Antes de vir, eu trabalhava para a IBM em Campinas, e tinha trabalhos extras como professor de língua estrangeira. Eu me envolvi por um tempo nas manifestações brasileiras contra a corrupção e a maneira como prepararam a Copa do Mundo em meu país. Quando o Maidan apareceu em Kiev, já estava interessado em ajudar. Assim que a guerra estourou, com meu currículo militar, eu tinha certeza que podia ajudar a terra que é a dos meus ancestrais. É uma honra poder ajudar.

Andrei: Você tem planos de voltar para casa? Caso sim, como acha que seu país vai recebê-lo quando chegar?
Lusvarghi: Tenho o desejo te ir para o Brasil para visitar minha família e meus amigos. No entanto, planejo ficar aqui e criar minha própria família. Mas esta guerra será longa, e prefiro viver o momento que sonhar com um futuro.
Não tenho dúvida que serei aclamado por alguns como um herói. Por outros, como um criminoso. Meu governo, no entanto, é bastante neutro, e não espero muitos problemas. Talvez alguma visita à Polícia Federal para prestar depoimentos, mas nada além disso.

Andrei: Você fala russo? Caso contrário, como se comunica com seus camaradas russófonos?
Lusvarghi: Falo russo. Comunicação não é um problema para mim.

Andrei: Caso você tenha, quais são suas visões políticas sobre a guerra na Nova Rússia? E, caso tenham acontecido, que discussões você teve com os soldados com os quais você serve?
Lusvarghi: Sou um grande fã de Aleksandr Dugin e das teorias políticas eurasianas. Não são muito conhecidas por aqui. É bom lembrar que as pessoas com as quais luto são de classes baixas, e carecem de educação formal. Mas gostaria de dizer que eles têm elementos do socialismo e muitos sentimentos nacionalistas. Também gostaria de dizer que eles são contra o trotskismo e contra a esquerda moderna. Acreditam, assim como eu, que andam lado a lado com os oligarcas e os poderes ocidentais que oprimem estas terras.

Andrei: Como falamos com o camarada (Victor) Lenta mais cedo, pouco foi dito sobre o sofrimento dos civis novorrussos na mídia sueca. Muitos são fortemente antirrussos, e a propaganda de guerra descarada contra a Rússia e comumente vista em artigos nos jornais suecos. Você tem algo a dizer ao povo da Suécia sobre a situação da população civil (no passado ou no presente) como um resultado dos ataques em Donetsk ou em Lugansk?
Lusvarghi: Sim. Vi com meus próprios olhos o que aconteceu quando unidades mais “politizadas” das forças ucranianas, como a Guarda Nacional e regimentos mercenários e voluntários vieram a nossas terras. Eles fizeram limpeza étnica. Vi crianças, mulheres e idosos mortos. Também, por causa do bloqueio, se não fosse pela ajuda humanitária russa, a população civil estaria passando fome e sem medicamentos.

Andrei: Em seu país, como as pessoas veem o conflito entre a OTAN e a Rússia, entre a Ucrânia e a Nova Rússia? Há muitos que apoiam a Nova Rússia? Como se tem noticiado o conflito, amigavelmente para com os EUA ou o contrário?
Lusvarghi: O governo brasileiro é neutro, mas a mídia é totalmente apoiadora da OTAN e dos EUA. Ainda assim, penso que os brasileiros, em sua maioria, estejam apoiando o povo de Donbass. Não necessariamente a Rússia, mas as pessoas daqui.
Também, por causa da Copa do Mundo, das eleições, das manifestações e do escândalo de corrupção da PETROBRAS, a mídia brasileira não tem coberto muito do que se passa aqui. Pelo menos é o que disse minha família...

Andrei: Tem algo que você gostaria de dizer a nossa audiência sueca que está lendo esta entrevista?
Lusvarghi: Gostaria de lembrar que as leis internacionais forçam que qualquer região ou povo tem o direito de declarar sua independência unilateralmente,  mesmo que seja contra a lei do governo central que os controla. Assim fez Kosovo. Assim fez a América. Assim fizeram muitos. Por que não o povo de Donbass? Por que o Ocidente apoia tais ações, e, agora, abruptamente e sem argumentos, condena-as?

Andrei: Obrigado por conceder-nos um pouco de seu merecido tempo livre para responder estas perguntas. Em nome de todos os meus camaradas suecos e da Operation Novorossiya: Solidarity Donbass, desejo a você toda a sorte em empreendimentos futuros. Espero falar com você de novo em breve!
Lusvarghi: Obrigado!
Mais uma coisa: diga aos suecos que deveriam lembrar-se de seu passado pagão, lutando contra a opressão cristã e a conversão forçada!

Andrei: Direi!