segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Revelação de Deus ao coração do homem (trecho)


por Seraphim Rose, do livro "God's Revelation to the Human Heart"






Por que alguém estuda religião? Há muitas razões incidentais, mas há apenas uma razão se a pessoa é realmente sincera: em poucas palavras, é ter contato com a realidade, encontrar uma realidade mais profunda que a realidade cotidiana que muda rapidamente, não deixa nada para trás e não dá qualquer felicidade duradoura para a alma humana. Toda religião tem suas tentativas sinceras de abrir contato com esta realidade. Eu gostaria de dizer algumas palavras hoje sobre como o Cristianismo Ortodoxo tenta fazer isso: abrir a realidade espiritual para o peregrino, o curioso da religião.

Procurar a realidade é uma tarefa perigosa. Vocês todos provavelmente já ouviram histórias de como jovens de nossos tempos de procura “se estragaram” tentando encontrá-la, e, ou morrem jovens, ou carregam para o resto da vida uma existência sombria en uma fração de seu potencial mental e espiritual. Eu mesmo me lembro de um amigo dos dias de minha própria procura, 25 anos atrás, quando Aldous Huxley acabara de descobrir o valor supostamente “espiritual” do LSD e influenciara muitos a seguirem-no. Este jovem, um peregrino típico que poderia estar assistindo a um curso como este aqui, certa vez me disse: “Não importa o que você acha dos perigos das drogas, você deve admitir que qualquer coisa é melhor que o cotidiano americano, que é espiritualmente morto.” Eu discordei, já que desde então eu já começava a apreender que a vida espiritual tem duas direções possíveis: pode levar-nos a uma mais elevada que esta vida cotidiana de corrupção, ou uma mais baixa, literalmente trazendo consigo uma morte espiritual, ou até física. Ele seguiu seu próprio caminho, e, antes mesmo dos trinta anos, era um velho caquético, com a mente arruinada e qualquer busca pela realidade deixada para trás.

Experiências semelhantes podem ser vistas entre pessoas que buscam variadas formas de experiências psíquicas, estados “extracorpóreos”, encontram-se com “ÓVNIS”, e por aí vai. (A experiência do suicídio em massa de Jonestown em 1980 é o bastante para lembrar-nos dos perigos inerentes à peregrinação espiritual.) Nossa literatura ortodoxa tem alguns bons exemplos instrutivos deste tipo. Aqui vou apenas citar um, da vida de São Nicetas das Cavernas de Kiev, que viveu quase mil anos atrás na Rússia:

Cheio de zelo, Nicetas pediu a seu Abade que o abençoasse para viver em reclusão O Abade (que era São Nikon) o proibiu, dizendo: “Meu filho! Não é bom que vocês jovens sejam indolentes. Melhor que vivam entre irmãos. Servindo-lhes não perderão sua recompensa. Você mesmo sabe como Isaque[1] foi iludido por demônios em reclusão. Estaria morto, não lhe tivesse salvo a graça especial de Deus, pelas orações dos Padres Antônio e Teodósio.”

“Padre,” respondeu Nicetas “Eu jamais serei enganado por nada deste tipo, mas quero ser firme contra os ardis dos demônios e pedir a Deus que me dê o dom da taumaturgia, como Isaque o Recluso, que mesmo até agora executa muitos milagres.”

“Seu desejo”, disse novamente o Abade, “está além de seu poder. Fica em guarda para que, tendo sido elevado, não caia. Eu, pelo contrário, ordeno-lhe que sirva aos seus irmãos, e receberá uma coroa de Deus por sua obediência.”

Nicetas, atraído pelo fortíssimo zelo pela vida em reclusão, não tinha a menor vontade de fazer o que o Abade lhe dissera. Ele seguiu o que tinha em mente. Fechou-se em reclusão e continuou rezando sem nunca sair. Depois de certo tempo, enquanto rezava, escutou uma voz que rezava com ele, e sentiu um cheiro extraordinário. Enganado por isto, disse a si mesmo: “Se este não fosse um anjo, não teria rezado comigo e não cheiraria como o Espírito Santo.” Nicetas começou a orar zelosamente, dizendo: “Senhor, manifesta-Te a mim inteligivelmente, de forma que eu possa ver-Te.”

Então, houve uma voz que lhe disse, “Não aparecerei para ti porque és jovem, para que, tendo sido elevado, não caias.”

O recluso respondeu com lágrimas, “Senhor, eu jamais serei iludido, porque o Abade me ordenou que não respondesse à ilusão diabólica, mas farei tudo que me ordenares.”

Então, tendo conseguido poder sobre ele, a cobra destruidora de almas disse, “É impossível que um homem ainda em carne me veja. Mas, vê, estou mandando meu anjo para que fique contigo. Segue seu desejo.”

Com estas palavras, um demônio em forma de anjo apareceu ao recluso. Nicetas caiu ante seus pés e adorou-o como um anjo. O demônio disse, “A partir de hoje não rezes, mas lê livros. Desta forma, entrarás em constante diálogo com Deus e receberás o poder de dar ensinamentos salutares àqueles que vierem a ti, e orarei sem cessar ao Criador de tudo por tua salvação.”

O recluso creu nestas palavras e foi ainda mais iludido. Ele parou de rezar e ocupou-se com leitura. Ele via o demônio constantemente e alegrava-se, supondo que um anjo rezava por ele. Então, começou a falar muito da Escritura àqueles que vinham a ele, e profetizar como o recluso palestino.

Sua fama se espalhou entre as pessoas do mundo e chegou à corte do Grão-Príncipe. Em verdade, não profetizava, mas contava aos que vinham a ele onde bens roubados haviam sido postos ou onde algo havia acontecido em um lugar distante, obtendo sua informação do demônio que o visitava. Então, contou ao Grão-Príncipe Iziaslau sobre o assassinato do Príncipe Gleb de Novgorod, e lhe aconselhou que enviasse seu filho para tomar o principado e reinar em seu trono. Foi o suficiente para as pessoas mundanas aclamarem o recluso como um profeta. É observável que pessoas mundanas e até mesmo monges sem discernimento espiritual são quase sempre atraídas por embusteiros, impostores, hipócritas e aqueles em ilusões demoníacas, e tomem-nos como santos e servos genuínos de Deus.

Ninguém se comparava a Nicetas em termos de conhecimento do Antigo Testamento. Mas ele não suportava o Novo Testamento, nunca tirando seus discursos dos Evangelhos ou das Epístolas Apostólicas, e não permitia que nenhum de seus visitantes mencionasse nada do Novo Testamento. Por este viés estranho no ensinamento, os padres do Monastério das Cavernas de Kiev perceberam que estava sendo enganado por um demônio. Havia, neste tempo, muitos santos monges abençoados com dons espirituais e graças no monastério. Eles tiraram o demônio de Nicetas com suas preces. Nicetas parou de vê-lo. Os padres tiraram Nicetas de sua reclusão e pediram-lhe que lhes contasse algo sobre o Antigo Testamento. Mas jurou que jamais lera estes livros, que previamente já sabia de cor. Pois havia até esquecido como ler, tanta fora a influência da ilusão satânica, e foi apenas com grande dificuldade que aprendeu a ler de novo. Por meio das preces dos santos padres, voltou a si, reconheceu e confessou seu pecado, lamentou-o com lágrimas amargas e ganhou um grande grau de santidade e o dom da taumaturgia em uma humilde vida entre os irmãos. Subsequentemente, São Nicetas seria consagrado Bispo de Novgorod.[2]

Esta história nos levanta uma questão para os dias de hoje. Como pode um peregrino evitar as armadilhas que ele encontra em sua peregrinação? Só há uma resposta para esta pergunta: ele não deve estar em sua procura em busca de experiências religiosas, que podem enganá-lo, mas da verdade. Qualquer um que estuda religião seriamente se vê nesta pergunta: é, literalmente, uma questão de vida ou morte.

Nossa fé cristã ortodoxa, em contraste com as confissões ocidentais, é frequentemente “mística”: está em contato com uma realidade espiritual que produz resultados normalmente ditos “sobrenaturais”, por estarem fora de qualquer lógica ou experiência mundanas. Não é necessário procurar a literatura ancestral para achar exemplos, pois a vida de um taumaturgo em nossos dias é cheia de elementos místicos. Arcebispo João Maximovitch,[3] que morreu apenas quinze anos atrás e vivia aqui nesta parte da Califórnia como Arcebispo de São Francisco, era visto em luz brilhante, levitava durante as orações, era clarividente, executava milagres de cura... Nada disto, no entanto, é relevante em si mesmo; pode facilmente ser imitado por falsos taumaturgos. Como sabemos que ele estava em contato com a verdade? 

Se você consultar um manual de teologia ortodoxa, perceberá que a verdade não pode ser descoberta pelos poderes limitados do homem. Você pode ler as Escrituras ou qualquer livro sagrado e nem mesmo entender o que dizem. Há um exemplo disto no Livro de Atos, na história do Apóstolo Filipe e do eunuco etíope:

E o anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Levanta-te e vai para a banda do Sul, ao caminho que desce de Jerusalém para Gaza, que está deserto. E levantou-se e foi. E eis que um homem etíope, eunuco, mordomo-mor de Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros e tinha ido a Jerusalém para adoração, regressava e, assentado no seu carro, lia o profeta Isaías. E disse o Espírito a Filipe: Chega-te e ajunta-te a esse carro. E, correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías e disse: Entendes tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, se alguém me não ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. E o lugar da Escritura que lia era este: Foi levado como a ovelha para o matadouro; e, como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia, assim não abriu a sua boca. Na sua humilhação, foi tirado o seu julgamento; e quem contará a sua geração? Porque a sua vida é tirada da terra. E, respondendo o eunuco a Filipe, disse: Rogo-te, de quem diz isto o profeta? De si mesmo ou de algum outro? Então, Filipe, abrindo a boca e começando nesta Escritura, lhe anunciou a Jesus. E, indo eles caminhando, chegaram ao pé de alguma água, e disse o eunuco: Eis aqui água; que impede que eu seja batizado? E disse Filipe: É lícito, se crês de todo o coração. E, respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus. E mandou parar o carro, e desceram ambos à água, tanto Filipe como o eunuco, e o batizou. E, quando saíram da água, o Espírito do Senhor arrebatou a Filipe, e não o viu mais o eunuco; e, jubiloso, continuou o seu caminho.[3]

Há vários elementos sobrenaturais e místicos neste relato: o anjo diz a Filipe aonde ir (ainda que para o etíope parecesse apenas um encontro de sorte no deserto), e, mais tarde, depois do batismo, o Espírito do Senhor arrebata Filipe, que desaparece ante os olhos do eunuco. Mas não foi isso que fez o eunuco querer ser batizado e tornar-se um cristão. Havia algo mais que o afetava: não os milagres, mas algo em seu coração. Milagres, apesar de às vezes ajudarem alguém a vir para a Igreja, não são a razão correta para aceitar o cristianismo. No mesmo Livro de Atos, lemos a história de Simão Mago, que quis pagar para juntar-se à Igreja e receber os dotes do Espírito Santo, porque eram muito espetaculares e miraculosos. Ele estava na magia, “profissão” lucrativa de seu tempo, em uma época que, quanto mais coisas sobrenaturais alguém pudesse fazer, mais dinheiro e prestígio ganharia, e em que havia mais dessas coisas acontecendo na Cristandade que no mundo pagão. Como sabemos do Livro de Atos, o pedido de Simão foi negado pelo Apóstolo Pedro e ele teve um mau fim, dando-nos a palavra “simonia” para o conceito de tentar comprar a graça de Deus.

Em contraste, quando Filipe falou com o eunuco etíope, algo no coração do mesmo mudou. É dito no Livro de Atos que ele passou a “crer”, isto é, seu coração foi derretido pela verdade que ouviu. As palavras da Escritura são muito poderosas, e, quando a verdadeira interpretação lhes é dada, algo no homem “abre-se” se seu coração está pronto. Assim sendo, o eunuco aceitou Cristo com toda sua alma, ele foi um homem mudado. Isso não foi por causa de milagres, mas por causa do que Cristo veio trazer à terra.

Notas:


O blog iniciou uma tradução do livro de Seraphim Rose sem saber que um outro grupo já o havia traduzido, apesar de ainda não o ter publicado. Entretanto, publica-se aqui um trecho: por um lado, para que não se descarte o trabalho; por outro, já introduzindo parte do texto para os que desejarem lê-lo integralmente quando for possível.

Que Deus os abençoe e permita que esta excelente obra possa chegar às mãos do público falante de português.

Referências:


[1] Refere-se a Santo Isaque o Recluso, que, tomado por demônios em visões que simulavam Cristo, ficou catatônico por anos, sendo acudido por Santo Antônio e São Teodoro das Cavernas de Kiev. (N.T.)
[2] BRIANCHANINOV, B. I. The Arena. Jordanville, New York: Holy Trinity Monastery, 1983. p. 31–34.
[3] Arcebispo João foi canonizado pela Igreja Ortodoxa Russa no Exterior em 1994 como São João de Xangai e São Francisco.
[4] Atos 8:26–39, ARC95 

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Uma breve história das línguas artificiais


originalmente publicado em Conlangs Monthly




Desde que o homem começou a explorar e dominar sua própria linguagem tentou ele superar as línguas naturais com suas próprias invenções. Uma língua inteira, no entanto, só seria construída na Baixa Idade Média.

A primeira, construída pela freira Santa Hildegarda em meados do século XII foi a lingua ignota, uma linguagem mística que, apesar de autoral, foi feita a posteriori. O idioma de Santa Hildegarda foi feito sobre o latim, com a reformulação de palavras centrais do vocabulário e uma transcrição em letras misteriosas. Deste momento até a Renascença, viu-se uma complexificação na arte da criptografia e o desenvolvimento da primeira língua artificial a priori, o balaibalan, também com abordagem religiosa. Desde então, novas línguas construídas apareceriam por motivos místicos, filosóficos ou científicos, uma das mais notáveis, relativamente com desenvolvimento complexo e uso difuso, sendo o solresol, uma língua puramente musical feita pelo músico francês François Sudre em meados do século XIX. A esta altura, muitos autores já discutiam a ideia de uma língua auxiliar que facilitasse a comunicação entre povos distintos. O autor italiano Umberto Eco escreveria uma longa dissertação sobre estas experiências em seu livro de 1993, “La ricerca della lingua perfetta nella cultura europea” (“A busca pela língua perfeita na cultura europeia”, sem tradução para o português).

Um marco na história das línguas construídas (ou “conlangs”), no entanto, viria com o volapuque, desenvolvido pelo padre alemão Johann Schleyer e publicado pela primeira vez em 1879. Mesmo que feita por razões religiosas, não diferentemente dos projetos já mencionados, teve seu sucesso na intenção de ser aprendida por certo público e ter desenvolvimento funcional. Foi popular em um curto espaço de tempo, recebendo alguma exposição midiática e passando pela tradução de livros e pela execução de convenções mundiais. Depois de algumas décadas, no entanto, um jovem judeu polonês traria a atenção direcionada ao volapuque para sua invenção: o esperanto.

O esperanto tomou o lugar do volapuque, aproximando-se mais da utopia de uma língua internacional e chegando firmemente aos dias de hoje mesmo após passar por uma grande variedade de cenários históricos e políticos adversos, com algumas estimativas contemporâneas mencionando milhões de falantes. Algo que a língua nunca conseguiu, no entanto, foi satisfazer por completo os anseios linguísticos dos que buscam um idioma auxiliar internacional: o próprio esperanto acabando por gerar o ido, com outras das incontáveis tentativas incluindo a interlíngua, de origem neolatina, numerosas línguas artificiais de origem eslávica e as matemáticas e, a posteriori, autênticas lojban e ithkuil.

A arte de criar línguas seria levada a um novo plano nas mãos do grande escritor J. R. R. Tolkien, que revelou ao mundo o extenso universo (ou “conworld”, no sentido de um mundo artificial) da Terra Média de 1937 à sua própria posteridade. Ainda que a ficção já tivesse experimentado algumas vezes com a ideia de uma língua própria da história, Tolkien levou isso a um novo nível quando construiu uma família inteira de idiomas falados em seu mundo, do Quênia ao Sindarin, da Língua Negra ao Khuzdul. Línguas artísticas, ou “artlangs”, reemergiriam na forma do atlante em “Atlantis – O Reino Perdido” e nas incontáveis línguas étnicas das franquias Star Wars e Star Trek, esta última tendo desenvolvido profundamente o klingon, língua que se tornou extremamente funcional e popular em sua base de fãs.


Por fim, é uma tendência perceptível na década de 2010 que atividades girando em volta das conlangs têm se tornado cada vez mais difusas. Não somente foi a popularidade destas reforçada por línguas como o na’vi em Avatar e o dothraki e o valiriano em Game of Thrones¸ sem falar com a versão cinematográfica da obra de Tolkien O Hobbit e o lançamento de um novo filme da franquia Star Trek, também pode ser mencionada a ação da internet, que criou um senso de comunidade geral. Por meio de fóruns e redes sociais, a construção amadora de novos idiomas foi popularizada, tornando-se algo discutido, além de que as construções mais populares chegaram a novos níveis em matéria de senso de comunidade, reforçadas por softwares e sites que facilitam o aprendizado das mesmas. As conlangs passaram por um longo caminho antes de virem a ser o que são agora, e assim são mantidas e constantemente desenvolvidas.

domingo, 15 de março de 2015

Como o Ocidente vende a guerra e compra a morte: Sobre Gaddafi, Assad e Putin


por Ghada Chehade


Enquanto persiste o conflito na Ucrânia e negociações de paz entre Putin e líderes ocidentais como Merkel e Hollande continuam, é importante observar os fatores e os interesses econômicos que se beneficiam da troca de regime na Ucrânia e como isso se compara a situações como a síria, a líbica e a iraquiana. Estes são ângulos e interesses relativos a estes conflitos dos quais pouco escutamos relatados pela mídia de massa ocidental, ângulos e interesses estes que não buscamos por estarmos envolvidos demais com dramas políticos ou humanos. A mídia de massa, por exemplo, passou tanto tempo demonizando um único inimigo, fosse ele Putin na Ucrânia, Assad na Síria, Gaddafi na Líbia ou Saddam Hussein no Iraque, que não exploraram criticamente como agentes externos podem explorar ou até apoiar tais conflitos e situações para assegurarem motivos político-econômicos como o acesso ao petróleo, abrindo caminho para empréstimos destrutivamente condicionais no FMI ou a derrubada de políticas domésticas que atacam os interesses mundiais imperiais e econômicos.

Existe na mídia ocidental um binário perigosamente falso em que a oposição a agendas corporativistas ou imperialistas ocidentais é um sinônimo do apoio a “homens maus” como, por exemplo, Putin ou Gaddafi. Isso é parte do que chamo de política de distração ou política de amálgama, em que a oposição a políticas neoliberais e imperiais – como empréstimos do FMI com condições de austeridade que devastam e empobrecem uma nação, seu povo e sua agricultura – é amalgamada com o apoio por certos “tiranos” (como definidos pelo Ocidente).

No caso de uma mudança de regime e do conflito concomitante na Ucrânia, a mídia ocidental está tão fixada na demonização do presidente russo Vladimir Putin com a anexação da Crimeia que pouca atenção é dada ao que JP Sottile chama de “anexação corporativa da Ucrânia”. Comentando o plano econômico para o país, Sottile ressalta que “para companhias americanas como Monsanto, Cargill e Chevron, há uma mina de ouro de lucros a se tirarem do agronegócio e da exploração energética”.

Alguns legistas europeus veem o conflito ucraniano como uma cortina de fumaça a fim de abrir caminho para o FMI, o Banco Mundial e o BERD com seus negócios relacionados à agroquímica e à biotecnologia agrícola, roubando a cobiçada e valorizada terra agrícola ucraniana. A política de distração no conflito ucraniano – isto é, o bem versus o mal personificado em Vladimir Putin – esconde a realidade do vasto roubo terras agrícolas que alimentará as corporações do agronegócio ocidental enquanto inauguram políticas venenosas e práticas como a colheita de organismos geneticamente modificados. Com Yanukovych de fora, o novo governo ucraniano concordou em tomar medidas de austeridade em troca pela “ajuda” do FMI e do Banco Mundial. Além do impacto devastador que essas medidas terão sobre os níveis de pobreza e o padrão de vida dos ucranianos, as medidas de austeridade também permitirão que corporações do agronegócio ocidental se aproveitem de restrições nas leis de produção de organismos geneticamente modificados levadas a um padrão mais próximo do resto da Europa. A Ucrânia, como Lendman explicou, foi, por muito tempo, considerada o “cesto de pão” da Europa. “Seu solo escuro e rico é altamente valorizado” e “ideal para o crescimento de grãos”. Com um terço da terra agrícola europeia, o potencial do país é vasto, fazendo dele um alvo ideal para os gigantes ocidentais do agronegócio que buscam se aproveitar de riquezas econômicas massivas alterando e envenenando o fornecimento de comida da região. Para muitos analistas, estas prospectivas econômicas estão por trás do conflito ucraniano.

Isto é, de certa forma, remanescente dos motivos econômicos para a invasão do Iraque em 2003 e a “guerra ao terror”. É sabido que o governo Bush mentiu sobre Saddam Hussein, antes aliado e parceiro de crime (de guerra), depois inimigo número um, que teria armas de destruição em massa, um pretexto para invadir um país. Como explico em meu próximo livro (NT: a autora Ghada Chehade pretende lançar um livro sobre a Guerra ao Terror ainda pelo fim de 2015), os motivos para a Guerra do Iraque foram majoritariamente econômicos, com megacorporações norte-americanas ganhando contratos massivos – pagos com o dinheiro dos contribuintes – para que o país que as Forças Armadas do país destruíram seja “reconstruído” (em infraestrutura, privatização de serviços públicos, etc.). Em adição aos contratos de desenvolvimento, lucro massivo foi gerado por petroleiras como Halliburton e Chevron. A Halliburton, em si, já foi gerenciada por ninguém mais, ninguém menos que o ex-vice-presidente Dick Cheney, que alegadamente ganhou 39,5 bilhões na Guerra do Iraque.

Da mesma forma, é perceptível que o plano para a intervenção na vida foi (e é) impulsionado por interesses no petróleo, e não por preocupações humanitárias. Nesta análise compreensiva da situação, Nafeez Ahmed explica que a violência e a morte de civis de ambos os lados do conflito é “explorada pela estreita competição geopolítica para controlar o petróleo do Oriente Médio” e o fornecimento de gás no mesmo. Seu relato conta com várias fontes oficiais, incluindo documentos que vazaram do governo, oficiais aposentados da OTAN e o ex-ministro do exterior francês Roland Dumas, demonstrando como a situação na Síria está ligada a antigos desejos ocidentais para se assegurar o controle sobre o petróleo e o gás do Oriente Médio, com os EUA e o RU treinando as forças sírias de oposição desde 2011 para causarem o colapso do regime sírio “de dentro”.

Enquanto uma usurpação ocidental de petróleo é um fator maior no Iraque, na Líbia e na Síria (além de proteger o dólar e os bancos europeus, no caso da Líbia), o caso na Ucrânia é majoritariamente pelo domínio de terras e pelos planos ocidentais do agronegócio de organismos geneticamente modificados – introduzidos por um empréstimo condicional do FMI de 17 bilhões de dólares – para o solo rico e fértil do país. É interessante perceber, como faz Joyce Nelson, do The Ecologista, que, no fim de 2013, Viktor Yanukovych, então presidente da Ucrânia, recusou um acordo de associação à União Europeia ligado a um empréstimo de 17 bilhões de dólares do FMI, optando por um auxílio russo de 15 bilhões seguido por um desconto no gás natural russo. Como Nelson explica, “sua decisão foi um fator decisivo nos protestos fatais subsequentes que o levaram a sair do cargo em fevereiro de 2014 e à crise atual”. Significa que o empréstimo que corre pelo FMI e suas condições econômicas vorazes estavam sobre a mesa antes da abdicação do ex-presidente Yakunovych, e que a mudança de regime no país convenientemente fez com que o empréstimo se fizesse possível.

Em adição à rica terra arável ucraniana sendo aberta para o agronegócio ocidental e para a produção de organismos geneticamente modificados, empréstimos do FMI tipicamente vêm com condições econômica estritas de reestruturação na forma de programas de programas de ajuste estrutural (SAPs). Estes programas essencialmente forçam a nação credora a reestruturar sua economia cortando gastos públicos e subsídios em áreas como a empregabilidade, o apoio à renda e a educação, além da privatização de serviços previamente acessíveis, como a saúde. Se tais condições do FMI forem aplicadas à Ucrânia, devastarão e empobrecerão o país.

Questões e agendas político-econômicas tão importantes na Ucrânia raramente são avaliadas amplamente, se mesmo avaliadas, na mídia de massa. Enquanto o conflito na Ucrânia continua e a mídia de massa ocidental foca predominantemente nos dramas políticos e humanos do conflito e no trato de cessar-fogo Minsk 2, apenas se pode esperar que o povo ucraniano não sofra o mesmo destino econômico que o povo iraquiano, o sírio e o líbio.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O nacionalismo de Donbass


por Leonid Savin, originalmente postado em Legio Victrix



Os eventos em andamento no sudeste da Ucrânia revelam um fenômeno extremamente importante. Ele não age somente como o indicador de um front da luta geopolítica entre o Ocidente e um agremiado da construção mundial multipolar, da ruptura no coração da própria natureza do Estado ucraniano (que, nos últimos tempos, intervém como satélite e cliente de Washington e de Bruxelas), do crescimento da consciência política dos cidadãos (no sentido de que os cidadãos defendem seus direitos e liberdades com armas na mão ao invés de serem sujeitos a um Estado weberiano fraco e incapaz de protegê-los tanto da arbitrariedade de seus oponentes políticos  quanto de continuar cumprindo suas obrigações sociais), mas, também, a manifestação de um novo nacionalismo, único em suas características e objetivos.

Muitos são os que têm o hábito de contemplar o nacionalismo de acordo com duas características fundamentais, uma baseada na cultura, compreendendo a língua (forma alemã), e, outra, na política (forma francesa). No entanto, o nacionalismo tem, no fundo, uma variedade muito maior de atributos, em qual entram a etnia, a solidariedade do grupo, as autorrepresentações e identificações. É exatamente de acordo com esta abordagem que examinamos os processos de desintegração do Estado ucraniano, desenvolvendo-se atualmente no Sudeste, e que nos identificamos como a expressão do nacionalismo de Donbass.

O caráter político do processo aparece de maneira suficientemente evidente a partir do momento que vemos claramente a noção de sujeito político se encarnar em Lugansk, Donetsk, Slaviansk, e numa série de outras cidades. Tal qualidade de sujeito político entrou em sua fase ativa de formação no período de conflito, como foi o caso na Abecásia e na Ossétia do Sul, em um momento em que, no contexto de aversão aguda da política extremamente chauvinista do presidente georgiano Gamsakhurdia, inflamaram-se os centros de resistência e reverberaram-se as declarações de independência da Geórgia.

Nas outras regiões do mundo, podemos observar semelhantes aspirações à construção do sujeito político. Estão ligadas ao fator étnico e conhecem as diversas vias de resolução. Agitam-se na Grã-Bretanha o nacionalismo irlandês e o escocês, e, na Espanha, o basco e o catalão. Os partidários da unificação e da criação de uma nação ucraniana unitária seguem, intencionalmente, em silêncio, apesar de serem exatamente os movimentos nacionalistas europeus que vêm em mente desde que se convocou a ideia de nação. Evidentemente, a Ucrânia estava fadada às diferentes formas de etnonacionalismo, ao menos se vista do ponto de vista da geografia política: em comparação aos outros países da Europa, esta antiga reública soviética é grande demais para ser uma massa uniforme homogênea em termos de cultura nacional, histórica e de prática sociopolítica. Fica claro que, à parte de um nacionalismo artificial, e, em grande parte, teórico dos supérfluos banderistas, existem na Ucrânia outras formas identitárias, do da Rutênia, a extremo-oeste, até a Sloboda, e, própria desta, do Império Russo a leste.

De acordo com a tipologia, o nacionalismo de Donbass pode ser definido como sendo de tipo misto. Por um lado, é situacional, isto é, dotado de uma especificidade construtivista, contra a qual se colidem os esquemas da Junta de Kiev. Mas, por outro, é primordial, isto é, dispõe-se de profundas raízes históricas, pelas quais convém clamar um conhecimento subjacente. A deficiência da política liberal à francesa dos oficiais de Kiev ao longo dos dez últimos anos fez com que o embrião do nacionalismo de Donbass pudesse crescer e se reforçar com todas suas variantes, todas enraizadas em uma única plataforma global.  Se em seus tempos lhe tivesse sido introduzido o federalismo, seria possível que a Ucrânia tivesse fugido da situação atual. E no contexto de um nacionalismo inclusivo, oficial a diferentes níveis, linguísticos e culturais, poderíamos ver algo semelhante ao que existe nos Estados Federados da Alemanha e nos cantões suíços (tomamos tais variantes em consideração, levando em conta a aparição frequente do vetor e da escolha europeia da Ucrânia em nome de suas diferentes forças políticas ao longo dos quinze últimos anos). Mas não se fez isso.

À medida que os aspectos primordiais se situam o mais frequentemente sobre a argumentação dos movimentos nacionalistas (e de libertação nacional), é necessário que se examine em detalhe todas as fases históricas que lhe são associadas a fim de propor uma sucessão única de camadas, que podem incluir uma mitologia própria, como a memória histórica. Uma primeira fase diz respeito ao período proto-estatal, deixando de lado as especificidades da clara expressão de "Estado moderno", associadas à compreensão da soberania. Aqui são revelados fatores interessantes, tais como a presença dos alanos (sármatas e citas) na região do Baixo Don, e, mais acima, pela margem esquerda do Dniepr e ao norte do litor do Mar de Azov. Assim, ainda que a Crimeia esteja integrada à esfera do mundo helênico, o Donbass é parte da esfera cultural alano-sármata.

A segunda fase, relativa ao período das grandes migrações dos povos, experiencia a passagem de numerosos povos através do território que examinamos, assim como a instalação de alguns destes no território. Além dos eslavos, chegaram povos turcófonos, como pechenegues e cumanos, todos recebendo o nome de "chapéus negros". O próprio território foi dominado pelo Caganato dos Cazares, assim sendo integrado à Horda Dourada.

Ao longo da terceira fase, a região se tornou terra nullius, imersa em selvageria vazia de estrutura política clara, contígua à periferia das possessões de diferentes potências (Império Russo, Reino da Polônia, Canato da Crimeia e Império Otomano), onde os interesses rivais podiam provocar conflitos bélicos. É apropriado ressaltar a carta mandada de Ivã, o Terrível, para o Cã da Crimeia, em que indica que os cossacos vivendo no território e importunando os tártaros não tinham ligação alguma com o império moscovita. Eram um povo livre. Mas não ficariam mais tanto tempo autônomos, já que os "grandes jogadores" conseguiriam controlar seus meios de comunicação terrestres, fluviais e marítimos, assim como constituir zonas mediadoras destinadas a proteger a metrópole de quaisquer surpresas.

E assim foi criada a "Nova Rússia", quando, ao longo da guerra contra o Império Otomano, apropriou a região marginal do Mar Negro, assim como os distritos mais remotos. É de extrema importância observar que a região do Donbass foi influenciada pelo fator do cruzamento de culturas, estas sempre relacionadas por uma identidade cristã ortodoxa comum. Nos atuais distritos de Lugansk e Donetsk apareceu uma unidade militar e agrícola com o nome de "Eslaviano-Sérvia", e, igualmente, na época do avanço turco pelos Balcãs, emigrados da região dos sérvios, dos montenegrinos e dos valacos. Assim, outra unidade aparece no distrito de Kirovograd: a "Nova Sérvia". De fato, apareceu sobre o território de Slaviansk, ainda antes, um destacamento de guerreiros montenegrinos que se instalaram dentro das fortalezas de Tor (onde foi a localidade de Ostrozhets até 1637). Nós observamos no nome deste lugar uma conotação interessante. O escritor noruguês Thor Heyerdahl, grande viajante e explorador, ao tentar remontar as origens da mitologia escandinava, chegou à conclusão que a divindade suprema de tal panteão pagão, Odin, fora um personagem histórico, chefe de um povo, que remonta do Don inferior até o norte da Europa. Como sabemos, Odin contava em suas suítes com Thor, portador do trovão, envolvido diretamente com a guerra e com práticas bélicas. Thor sacrifica seu braço a fim de que os deuses enganassem a astúcia do lobo Fenrir, encarnação do mal na mitologia escandinava.

A fase seguinte foi a unificação territorial e política pelo Império Russo, através da constituição da terra (mais tarde, "oblast") do Exército de Don. Aqui se combinam os fatores religiosos e o cossaco. A maioria dos cossacos rejeitou as reformas do Patriarca Nikon e manteve para si a "Velha Crença". A esta fase se sucedeu o período da Revolução de Outubro, marcada pela tentativa da criação República Socialista Soviética de Donetsk-Krivoi Rog.  No entanto, o território foi integrado à Ucrânia.

Em seguida, vem a época da modernização stalinista, em que um fluxo de novas pessoas chegando contribuiu para o estabelecimento da indústria regional. Fica claro que o caráter trabalhador e as explorações heroicas dos mineiros e dos metalúrgicos, em oposição às figuras trabalhosas de marchantes e políticos (a criptoburguesia), exerceu igualmente uma influência no processo profundo de prisão de consciência identitária "de Donbass". Esta fase se prolonga organicamente pelo período pós-soviético, em que se pode escutar da própria boca dos habitantes da região "somos de Donbass", mais que se evoca toda a noção de pertencimento ao território ucraniano em sua integridade.

O fator da indústria mineradora teve igualmente significância determinante na formação da visão própria de mundo dos habitantes de Donbass. O trabalho nas minas é perigoso. Frequentemente a morte é encontrada, por uma pessoa ou por um grupo. Uma percepção da morte e uma relação com ela, especialmente particulares, são desenvolvidas, estranhas aos habitantes da Polésia ou de Lwów. Os nacionalistas de Lwów preferem à morte a evasão em direção à "Europa das Luzes", ou a uma nova pátria, como o Canadá, ou a Chicago norte-americana. Assim fizeram seus predecessores depois que haviam decidido unir-se à luta da CIA contra a União Soviética. Em Donbass, seus resistentes hodiernos vivenciam um espírito elevado e apaixonado próprio dos habitantes da região.

Em 1991, ao chamado de Kravchuk, a intelligentsia (incluindo a diáspora) envolveu-se no processo de formação de um novo Estado ucraniano. A construção de um semblante extraordinário, tal a elaboração de um mito, narrando os grandes ancestrais, os "ucraniopitecos", os arianos. Era necessário fixar os fundamentos de uma primordialidade da ideologia ucraniana. Debruçava-se mais sobre o delírio intenso e as alucinações de espíritos doentes que sobre a investigação científica e um programa, isto para presidir o nascimento de novas elites estatais e a educação de um espírito patriótico. O nacionalismo banderista é, por natureza, exclusivo, e as contradições internas em relação ao nacionalismo ucraniano, dominantes sobre outras ideologias do século XX, exercem uma função mais repulsiva que atrativa. Perante tais contradições dissimulam-se habitualmente os nacionalistas atuais em suas linhas, ainda que, em sua grande maioria, estejam longe de dispor dos conhecimentos teóricos de Dontsov, Lipa, Stetsko, Mikhnovski, e de outros apologistas do nacionalismo ucraniano.

Além disso, convém remarcar que a região de Donbass não foi submetida à expansão greco-católica que sofreu a Ucrânia Ocidental. Assim, é da Igreja Ortodoxa Russa do Patriarcado de Moscou que provém a posição dominante. Alguns poucos hereges, os filaretianos, que se dizem fiéis ao Patriarcado de Kiev, algumas extensões tardias do unismo e diferentes correntes protestantes não têm papel significante algum na formação do estado de espírito nos oblasts de Lugansk e Donetsk, onde seus adeptos e pregadores suscitam a aversão.

Resumidamente, observamos a aparição de um novo fenômeno, único e interessante: o nacionalismo de Donbass. Ao mesmo tempo, manifesta-se como forma intrínseca de um nacionalismo russo mais vasto, por sua estrutura ser obra dos mesmos fundamentos do nacionalismo russo, este exercendo uma função de cúpula, como uma ligação com a Rússia, particularmente com os distritos do Sul, historicamente ligados a Donbass. Por fim, independentemente da questão da guerra que atualmente segue entre Don e Dniepr, é evidente que o nacionalismo de Donbass se integra organicamente com o mundo russo da Eurásia.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Entrevista com Rafael Lusvarghi


por Andrei Volkov e Rafael Lusvarghi


(NT: Esta entrevista foi feita no dia 1/1/2015 pelo russo Andrei Volkov para o site sueco Operation Novorossiya com Rafael Lusvarghi, brasileiro que figurou nos noticiários ao ser brutalizado pela polícia durante as manifestações de meados de 2014, teve a imagem explorada ao ter a vida detalhadamente descoberta, e, agora, encontra-se lutando na Nova Rússia contra a Junta de Kiev. Apesar de introduções longas geralmente se fazerem necessárias, a entrevista é completa o bastante.)

Andrei: Poderia apresentar-se?
Lusvarghi: Meu nome é Rafael Marques Lusvarghi, nasci em Jundiaí, perto de São Paulo, no Brasil. Servi na Legião Estrangeira Francesa por alguns anos, e, de volta ao Brasil, tornei-me um tenente na Polícia Montada. Sempre tive grande amor pela Rússia, e é por isso que vivi lá por um tempo e aprendi cultura, língua e história.

Andrei: Dada a situação na Nova Rússia, como está se mantendo?
Lusvarghi: Estou me mantendo bem. Sou um guerreiro profissional... (risos) E, com meus camaradas aqui, formamos uma família de verdade. Então, apesar de todas as dificuldades e dos sacrifícios, tudo tem ido bem.

Andrei: Você mencionou ter experiência militar, mas que tipo de vida você tinha antes de se juntar a nossos camaradas na Nova Rússia, e o que o fez ir, em primeiro lugar?
Lusvarghi: Antes de vir, eu trabalhava para a IBM em Campinas, e tinha trabalhos extras como professor de língua estrangeira. Eu me envolvi por um tempo nas manifestações brasileiras contra a corrupção e a maneira como prepararam a Copa do Mundo em meu país. Quando o Maidan apareceu em Kiev, já estava interessado em ajudar. Assim que a guerra estourou, com meu currículo militar, eu tinha certeza que podia ajudar a terra que é a dos meus ancestrais. É uma honra poder ajudar.

Andrei: Você tem planos de voltar para casa? Caso sim, como acha que seu país vai recebê-lo quando chegar?
Lusvarghi: Tenho o desejo te ir para o Brasil para visitar minha família e meus amigos. No entanto, planejo ficar aqui e criar minha própria família. Mas esta guerra será longa, e prefiro viver o momento que sonhar com um futuro.
Não tenho dúvida que serei aclamado por alguns como um herói. Por outros, como um criminoso. Meu governo, no entanto, é bastante neutro, e não espero muitos problemas. Talvez alguma visita à Polícia Federal para prestar depoimentos, mas nada além disso.

Andrei: Você fala russo? Caso contrário, como se comunica com seus camaradas russófonos?
Lusvarghi: Falo russo. Comunicação não é um problema para mim.

Andrei: Caso você tenha, quais são suas visões políticas sobre a guerra na Nova Rússia? E, caso tenham acontecido, que discussões você teve com os soldados com os quais você serve?
Lusvarghi: Sou um grande fã de Aleksandr Dugin e das teorias políticas eurasianas. Não são muito conhecidas por aqui. É bom lembrar que as pessoas com as quais luto são de classes baixas, e carecem de educação formal. Mas gostaria de dizer que eles têm elementos do socialismo e muitos sentimentos nacionalistas. Também gostaria de dizer que eles são contra o trotskismo e contra a esquerda moderna. Acreditam, assim como eu, que andam lado a lado com os oligarcas e os poderes ocidentais que oprimem estas terras.

Andrei: Como falamos com o camarada (Victor) Lenta mais cedo, pouco foi dito sobre o sofrimento dos civis novorrussos na mídia sueca. Muitos são fortemente antirrussos, e a propaganda de guerra descarada contra a Rússia e comumente vista em artigos nos jornais suecos. Você tem algo a dizer ao povo da Suécia sobre a situação da população civil (no passado ou no presente) como um resultado dos ataques em Donetsk ou em Lugansk?
Lusvarghi: Sim. Vi com meus próprios olhos o que aconteceu quando unidades mais “politizadas” das forças ucranianas, como a Guarda Nacional e regimentos mercenários e voluntários vieram a nossas terras. Eles fizeram limpeza étnica. Vi crianças, mulheres e idosos mortos. Também, por causa do bloqueio, se não fosse pela ajuda humanitária russa, a população civil estaria passando fome e sem medicamentos.

Andrei: Em seu país, como as pessoas veem o conflito entre a OTAN e a Rússia, entre a Ucrânia e a Nova Rússia? Há muitos que apoiam a Nova Rússia? Como se tem noticiado o conflito, amigavelmente para com os EUA ou o contrário?
Lusvarghi: O governo brasileiro é neutro, mas a mídia é totalmente apoiadora da OTAN e dos EUA. Ainda assim, penso que os brasileiros, em sua maioria, estejam apoiando o povo de Donbass. Não necessariamente a Rússia, mas as pessoas daqui.
Também, por causa da Copa do Mundo, das eleições, das manifestações e do escândalo de corrupção da PETROBRAS, a mídia brasileira não tem coberto muito do que se passa aqui. Pelo menos é o que disse minha família...

Andrei: Tem algo que você gostaria de dizer a nossa audiência sueca que está lendo esta entrevista?
Lusvarghi: Gostaria de lembrar que as leis internacionais forçam que qualquer região ou povo tem o direito de declarar sua independência unilateralmente,  mesmo que seja contra a lei do governo central que os controla. Assim fez Kosovo. Assim fez a América. Assim fizeram muitos. Por que não o povo de Donbass? Por que o Ocidente apoia tais ações, e, agora, abruptamente e sem argumentos, condena-as?

Andrei: Obrigado por conceder-nos um pouco de seu merecido tempo livre para responder estas perguntas. Em nome de todos os meus camaradas suecos e da Operation Novorossiya: Solidarity Donbass, desejo a você toda a sorte em empreendimentos futuros. Espero falar com você de novo em breve!
Lusvarghi: Obrigado!
Mais uma coisa: diga aos suecos que deveriam lembrar-se de seu passado pagão, lutando contra a opressão cristã e a conversão forçada!

Andrei: Direi!